quarta-feira, 22 de junho de 2011

OS TRÊS MAL AMADOS

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

João Cabral de Melo Neto

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Almost!


Percebi dia desses que tenho diversos tons, formas, sons e cheiros
Tenho variações que vão do amarelo quase branco ao violeta intenso
Numa escala de valores melancólicos,
Mas ao mesmo tempo sólidos.

Descobri que sou mulher ou quase.
E me sinto sendo quase.
E quando atravessando a rua, por minhas pernas me deixo levar
Eu sempre vou em direção ao sol e com certeza evaporo.
Porque eu sou quase.

Sou quase quando as palavras me fogem
Sou quase sem quase ser menina,
Sou quase sem querer,
Sou quase não sabendo ser.
Quase poeira, canção... Quase nada!

Mas queria mesmo ter o cheiro da noite
Ser a chuva que molha
Ser o som do instrumento que pulsa a canção.
Mas...
Sou quase.
Mulher de capricórnio, quase aquário.
E ser quase é quase um não
Não sei então ser mulher...

Quando não me olham sumo.
Fico incolor.
Chata.
Chamariz de luz fraca.
Sou sem dúvida um carrossel manual,
como caixinha de jóias
rodopiando na canção (como fada de Botequim que quase sou)
toda vez que abrem,
me fazem dançar ao som dos Bandolins,
e guardam-me sem perceber o quanto estou zonza.
OU quase assim...

domingo, 5 de junho de 2011